segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O homo plasticus de Zeca Viana: tecnologia, alienação e a identidade como mercadoria

Por Rogério Duarte.

Não bastava que Zeca Viana, há apenas dois anos, tivesse trazido à luz os Seres Invisíveis – trabalho que já marcou, pela ousadia e pelo experimentalismo, a nova geração independente da canção brasileira; era preciso que ele trouxesse, como fará a partir de 1º de novembro, novas canções, em forma de single, com jeito de pop, mas com densidade muito maior do que pode supor um ouvinte desavisado.

“Homo Plasticus”, o primeiro dos lançamentos, é canção breve, de namoro com o folk, e melodia e arranjos simples, sem a sonoridade conceitual da maioria das pequenas obras-primas dos Seres Invisíveis. Mas não fica atrás de nenhuma delas (pelo contrário – aprofunda-as): essa relativa calmaria sonora fica rasurada frente à virulência passiva da letra, de poucos versos, mas de largo alcance: “Eu sou o homo plasticus / na incrível era do polietileno / plastificando o corpo e o amor”; esse último verso se amarra ao refrão “com látex, botox, xerox, silicone sensual”; e finalmente a segunda parte “Eu sou a nova máquina / ideologicamente biodegradável / plastificando o corpo e o amor”, que engata novamente no refrão.

O conteúdo crítico e o valor de “Homo Plasticus” estão na aparência da letra: o sujeito da canção, na primeira pessoa, se declara o “homo plasticus”, versão ao mesmo tempo avançada e regredida – talvez até degradante – do homo sapiens. É avançada porque se constitui na esteira elétrica dos avanços das ciências (esteira histérica das academias, se quisermos); é regredida porque os avanços materiais acabam por restringir e aviltar a dimensão afetiva – exatamente o amor, palavra que dá o tom lírico e sombrio da canção, expandindo-a no limite do grave, em todos os sentidos que esse termo pode assumir.

Talvez o Homo Plasticus seja uma espécie tecnologicamente aprimorada de múmia, cujas técnicas de sobrevida preservam o indivíduo para aprisioná-lo num revestimento de polietileno, clamando baixinho pelo amor; talvez o Homo Plasticus seja a versão brasileira do homem moderno, isolado dos outros e de si mesmo pelo látex, enrijecido na alma pelo botox, reproduzido à exaustão pelo xerox, catando migalhas de afeto, ou formas-mercadoria de amor, no convite do silicone sensual.

Mais que tudo isso, finalmente: o Homo Plasticus não é homem, mas “máquina ideologicamente biodegradável”, mais uma vez constituído num cruzamento que não gera síntese, apenas imobilidade. Se é máquina, não é homem; se é biodegradável, é só corpo, matéria, porque perdeu a capacidade de emancipação e de autonomia, isto é, dispensa ideologias de qualquer sorte, num oco de consciência envolto de plástico, preenchido de outras matérias química e alquímicamente alienantes. Isso se imaginarmos que “ideologia”, aqui, significa “conjunto de ideias”; caso tomemos esse termo, grosseiramente, sem aprofundar na análise, no sentido de “falseamento da realidade”, perceberemos que o Homo Plasticus, para se manter de pé, será preenchido, à moda dos produtos feitos em massa, por ideais e estruturas de plástico que lhe conferem, a um só tempo, identidade móvel que é, no extremo, identidade nenhuma.

O sujeito da canção “Homo Plasticus” sabe que está confinado por uma lógica que lhe vem de fora e que lhe confere o relevo e o sentido – que é todos, pelo avanço tecnológico universal, e nenhum, pela falência identitária. O amor fica ressoando como lamento do que nunca pode ser alcançado, limitado que está pela lógica da mercadoria. E é por aí que a canção alcança a densidade anteriormente citada, polissêmica a cada acorde ou nota, a cada verso ou unidade de som: “Homo Plasticus” cabe na roda de fogueira de adolescentes despreocupados do conteúdo (pequenos Homo Plasticus à cata do amor?) e pode ser executada facilmente numa FM – afinal é apenas o primeiro single do próximo trabalho de Zeca Viana, o disco Calor & Aurora, que deve ser lançado no ano que vem, dispensando a sonoridade experimental, à primeira vista; mas também admite a análise de sentidos bem mais profundos, que remetem às ambiguidades desta nossa época, em que a evolução tecnológica implica o abandono da emancipação humana, de que o Homo Plasticus é expressão cabal.

Rogério Duarte é integrante da Identidade Musical, professor de literatura e gramática, atualmente em sua pesquisa de doutorado, analisa as relações entre o rock português e a poesia portuguesa.

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